Contabilidade criativa turva meta fiscal
A austeridade fiscal, traduzida em metas de superávit primário, é um dos pontos centrais da estabilidade macroeconômica conquistada pelo Brasil. Essa realidade pode estar sendo minada por manobras contábeis para maquiar a expansão de gastos via utilização de metodologia somente justificável sob acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Este previa uma experiência piloto de redução de certos investimentos para efeito de cumprimento de metas fiscais.
A metodologia surgiu no contexto de programas de apoio financeiro do fundo a países que, como o Brasil, sofriam as consequências de crises derivadas de parada súbita de fluxos de recursos externos. A ideia era evitar que dificuldades de cortar gastos de custeio terminassem por sacrificar investimentos cruciais para a recuperação pós-crise. Ao mesmo tempo, era preciso não correr o risco de criar incentivos para a ampliação de despesas correntes.
Implícita nessa estratégia estava a ideia de viabilizar investimentos públicos em períodos de ajuste fiscal. A experiência da crise de endividamento externo dos anos 80, que afetou praticamente todos os países da América Latina, mostrou que o ajuste necessário fora feito à custa basicamente da deterioração dos serviços de infraestrutura. Assim, esses países terminaram experimentando declínio da atividade econômica, da renda e do emprego maior do que seria de esperar com as medidas para enfrentar a escassez de financiamento externo.
Por isso, nos anos 90, quando o Brasil precisou recorrer novamente ao FMI, em meio às crises enfrentadas pelo governo FHC, as negociações incluíram a composição de um "Projeto Piloto de Investimentos (PPI)", de cuja seleção e acompanhamento participariam o fundo e o Banco Mundial. O objetivo não era, como é o caso neste momento, justificar reduções de superávit primário por conta de elevação de gastos correntes, mas evitar a repetição da queda de investimento público observada na década de 1980.
Em 2005, o atual governo decidiu implementar o PPI, sem qualquer conexão com um acordo com o FMI. Os objetivos seriam semelhantes, isto é, evitar gargalos de infraestrutura. A ideia era positiva, mas não fazia sentido fora do contexto de um acordo com o fundo.
Pior foi incluir no PPI, indiscriminadamente, todo o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e o programa Minha Casa, Minha Vida, o que distorcia a ideia. Essa contabilidade criativa permite reduzir o esforço para cumprir a meta de superávit primário mediante o mascaramento das informações fiscais e sem qualquer monitoramento.
Para 2009 a meta oficial está fixada em 2,5% do PIB, mas, na prática, o esforço para cumpri-la poderá ficar em 1,56% do PIB, uma vez que os descontos previstos estão em 0,94 ponto porcentual (p.p.) do PIB. Para 2010, a meta é 3,3% do PIB, mas o esforço efetivo deverá ser de 2,62% do PIB, já que os descontos deverão ficar em 0,68 p.p. do PIB. Há, ainda, um projeto de lei do Executivo que aumenta o total de descontos de 2010 (R$ 22,5 bilhões) para cerca de 0,9 p.p. do PIB (ou R$ 29,8 bilhões), sob a justificativa de que o programa Minha Casa, Minha Vida fora incluído no PAC e, portanto, os descontos precisariam aumentar.
Além do uso indiscriminado dos investimentos para "cumprir" metas fiscais, o respectivo espaço gerado não está sendo bem utilizado. Todas as despesas do governo federal estão crescendo: Previdência, pessoal, custeio da máquina e os próprios investimentos. Os custos dessa política já estão contratados, isto é, perda de potencial de crescimento.
O próximo governo não escapará da necessidade de lidar com essa má herança. O desafio será realizar reformas estruturais que permitam recuperar a capacidade de investimento do governo federal e atrair investimentos privados em infraestrutura, de modo a sustentar taxas elevadas de expansão do PIB sem pressionar a inflação.
A contabilidade criativa dificilmente será considerada nas avaliações privadas do cumprimento de metas de superávit primário. Será fácil perceber que não se atingirá o objetivo de retomar no curto prazo a trajetória de redução da relação dívida pública líquida/PIB. Ao contrário, a relação subiu nos últimos meses, embora em parte pela apreciação cambial, que impacta negativamente o valor em reais das reservas internacionais.
O indicador piorou entre dezembro de 2008 e outubro de 2009, ao passar de 38,8% para 44,8% do PIB. Com os ajustes do câmbio, a relação seria, nos mesmos meses, de 42,3% e de 41,7%, respectivamente. E, também descontando o efeito da apreciação cambial e outros relacionados à dívida externa, nota-se que o indicador está oscilando em torno de 42% na média de agosto a outubro. Para o final deste ano, nossas projeções indicam, com e sem ajuste do câmbio, respectivamente, patamares de 45,7% do PIB e de 43,2% do PIB.
É provável que os especialistas passem a analisar a execução fiscal sem os descontos contábeis nas metas fiscais, pois somente assim poderão bem avaliar os riscos de uma expansão pouco transparente do endividamento público. Com ou sem contabilidade criativa se constatará uma deterioração dos indicadores de endividamento, que poderá ser revertida a partir de 2010, com a recuperação da arrecadação tributária.
Felizmente, a piora da gestão fiscal e da qualidade das estatísticas do setor público ainda não gera o risco de insolvência, mas o próximo governo terá uma tarefa nada fácil para retomar a trajetória de responsabilidade fiscal.
A austeridade fiscal, traduzida em metas de superávit primário, é um dos pontos centrais da estabilidade macroeconômica conquistada pelo Brasil. Essa realidade pode estar sendo minada por manobras contábeis para maquiar a expansão de gastos via utilização de metodologia somente justificável sob acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Este previa uma experiência piloto de redução de certos investimentos para efeito de cumprimento de metas fiscais.
A metodologia surgiu no contexto de programas de apoio financeiro do fundo a países que, como o Brasil, sofriam as consequências de crises derivadas de parada súbita de fluxos de recursos externos. A ideia era evitar que dificuldades de cortar gastos de custeio terminassem por sacrificar investimentos cruciais para a recuperação pós-crise. Ao mesmo tempo, era preciso não correr o risco de criar incentivos para a ampliação de despesas correntes.
Implícita nessa estratégia estava a ideia de viabilizar investimentos públicos em períodos de ajuste fiscal. A experiência da crise de endividamento externo dos anos 80, que afetou praticamente todos os países da América Latina, mostrou que o ajuste necessário fora feito à custa basicamente da deterioração dos serviços de infraestrutura. Assim, esses países terminaram experimentando declínio da atividade econômica, da renda e do emprego maior do que seria de esperar com as medidas para enfrentar a escassez de financiamento externo.
Por isso, nos anos 90, quando o Brasil precisou recorrer novamente ao FMI, em meio às crises enfrentadas pelo governo FHC, as negociações incluíram a composição de um "Projeto Piloto de Investimentos (PPI)", de cuja seleção e acompanhamento participariam o fundo e o Banco Mundial. O objetivo não era, como é o caso neste momento, justificar reduções de superávit primário por conta de elevação de gastos correntes, mas evitar a repetição da queda de investimento público observada na década de 1980.
Em 2005, o atual governo decidiu implementar o PPI, sem qualquer conexão com um acordo com o FMI. Os objetivos seriam semelhantes, isto é, evitar gargalos de infraestrutura. A ideia era positiva, mas não fazia sentido fora do contexto de um acordo com o fundo.
Pior foi incluir no PPI, indiscriminadamente, todo o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e o programa Minha Casa, Minha Vida, o que distorcia a ideia. Essa contabilidade criativa permite reduzir o esforço para cumprir a meta de superávit primário mediante o mascaramento das informações fiscais e sem qualquer monitoramento.
Para 2009 a meta oficial está fixada em 2,5% do PIB, mas, na prática, o esforço para cumpri-la poderá ficar em 1,56% do PIB, uma vez que os descontos previstos estão em 0,94 ponto porcentual (p.p.) do PIB. Para 2010, a meta é 3,3% do PIB, mas o esforço efetivo deverá ser de 2,62% do PIB, já que os descontos deverão ficar em 0,68 p.p. do PIB. Há, ainda, um projeto de lei do Executivo que aumenta o total de descontos de 2010 (R$ 22,5 bilhões) para cerca de 0,9 p.p. do PIB (ou R$ 29,8 bilhões), sob a justificativa de que o programa Minha Casa, Minha Vida fora incluído no PAC e, portanto, os descontos precisariam aumentar.
Além do uso indiscriminado dos investimentos para "cumprir" metas fiscais, o respectivo espaço gerado não está sendo bem utilizado. Todas as despesas do governo federal estão crescendo: Previdência, pessoal, custeio da máquina e os próprios investimentos. Os custos dessa política já estão contratados, isto é, perda de potencial de crescimento.
O próximo governo não escapará da necessidade de lidar com essa má herança. O desafio será realizar reformas estruturais que permitam recuperar a capacidade de investimento do governo federal e atrair investimentos privados em infraestrutura, de modo a sustentar taxas elevadas de expansão do PIB sem pressionar a inflação.
A contabilidade criativa dificilmente será considerada nas avaliações privadas do cumprimento de metas de superávit primário. Será fácil perceber que não se atingirá o objetivo de retomar no curto prazo a trajetória de redução da relação dívida pública líquida/PIB. Ao contrário, a relação subiu nos últimos meses, embora em parte pela apreciação cambial, que impacta negativamente o valor em reais das reservas internacionais.
O indicador piorou entre dezembro de 2008 e outubro de 2009, ao passar de 38,8% para 44,8% do PIB. Com os ajustes do câmbio, a relação seria, nos mesmos meses, de 42,3% e de 41,7%, respectivamente. E, também descontando o efeito da apreciação cambial e outros relacionados à dívida externa, nota-se que o indicador está oscilando em torno de 42% na média de agosto a outubro. Para o final deste ano, nossas projeções indicam, com e sem ajuste do câmbio, respectivamente, patamares de 45,7% do PIB e de 43,2% do PIB.
É provável que os especialistas passem a analisar a execução fiscal sem os descontos contábeis nas metas fiscais, pois somente assim poderão bem avaliar os riscos de uma expansão pouco transparente do endividamento público. Com ou sem contabilidade criativa se constatará uma deterioração dos indicadores de endividamento, que poderá ser revertida a partir de 2010, com a recuperação da arrecadação tributária.
Felizmente, a piora da gestão fiscal e da qualidade das estatísticas do setor público ainda não gera o risco de insolvência, mas o próximo governo terá uma tarefa nada fácil para retomar a trajetória de responsabilidade fiscal.
por Mailson da Nóbrega, sócio-diretor da Tendências Consultoria, foi ministro da Fazenda. Felipe Salto, economista pela FGV/EESP, é analista da Tendências Consultoria
Fonte: Estado de São Paulo, 30.11.2009 (grifos nossos)
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