quinta-feira, 23 de julho de 2009

RTT, será que o leão ficou manso?

Regime de transição e neutralidade fiscal
por Roberto Haddad
Valor Online


Você sabe o que é RTT? A sigla, que está se tornando - ou deveria estar - cada vez mais conhecida dos empresários brasileiros, trata da mudança mais relevante que aconteceu no sistema tributário brasileiro nas últimas três décadas. O RTT - ou regime tributário de transição - traz o novo conceito de descolamento entre a apuração fiscal e a apuração contábil. O lucro contábil já não é mais parâmetro para calcular os impostos. A apuração fiscal passa a seguir outro cálculo de lucro, apurado somente para esse fim, baseado nas regras contábeis existentes até dezembro de 2007, que pode ser, em muitos casos, bem diferente do lucro apurado contabilmente.

E quais são as consequências disso? Bem, qualquer mudança nos critérios de reconhecimento de receitas, despesas e custos, trazida pelo processo de harmonização contábil com os padrões internacionais, não deveria trazer mudança na apuração fiscal. E as diferenças devem ser ajustadas no novo registro auxiliar "FCONT", criado especialmente para esse fim. Agora, a pergunta que deve ser feita é a seguinte: será mesmo que, apesar da teoria de neutralidade fiscal em relação à nova contabilidade, realmente não existe impacto?

Nem sempre. Um exemplo é o cálculo dos juros sobre o capital próprio, que é baseado no patrimônio líquido, com a limitação de 50% dos lucros. Nesse caso, qual o patrimônio que deve ser usado: o contábil ou o fiscal? A norma do fisco traz que a recém-criada conta de ajuste de valor patrimonial não deve ser incluída no cálculo desses juros. Será que isso quer dizer que o resto do patrimônio contábil deve ser? E qual o lucro que limita os juros? E ainda há diversas questões societárias inerentes a esse assunto. Utilizar patrimônio e lucros contábeis significa juros diferentes, havendo impacto fiscal - e não neutralidade.

Outro exemplo da potencial não-neutralidade fiscal decorre das taxas de depreciação que poderão ser consideradas dedutíveis. Tanto a regra anterior - até 2007 - como a nova consideram a vida útil dos bens como base para a definição das taxas de depreciação. Ocorre que, na prática, muitas empresas - com exceções, como as concessionárias - utilizavam os limites definidos pela legislação tributária para fins de depreciação contábil. Por exemplo, o fisco permitia que as edificações fossem depreciadas em, no mínimo, 25 anos, e esse era o período normalmente utilizado também na contabilidade. A questão é que a regra não mudou, mas a postura sim. Não deve haver mais qualquer vinculação entre as taxas de depreciação com base na vida útil dos bens e os limites fiscais. Assim, digamos que a vida útil de uma edificação seja de 40 anos e essa seja a base para sua depreciação contábil. Será possível fazer uma exclusão fiscal para que se chegue ao prazo utilizado anteriormente de 25 anos? Em teoria não, já que não houve aqui uma mudança de critério contábil para o reconhecimento dessa despesa. Há algumas interpretações que defendem que o prazo estabelecido pelo fisco é um critério contábil, coisa difícil de aceitar, pois não cabe ao fisco definir critério contábil que não seja para fins fiscais.

Finalmente, chegamos ao ágio. A dedutibilidade do ágio pago em uma aquisição estava condicionada a dois fatores: 1) que ocorresse uma incorporação entre a empresa que pagou o ágio e a empresa adquirida; 2) que o ágio fosse decorrente de mais valia de ativos ou rentabilidade futura da empresa adquirida. Como, na maioria dos casos, as aquisições são feitas com base em análises financeiras dos lucros projetados, suportadas por relatórios de fluxos de caixa descontados, boa parte dos ágios registrados fundamentaram-se na rentabilidade futura das empresas adquiridas, e amortizados no prazo mínimo de cinco anos, conforme prevê a legislação. E essa legislação não mudou. O que ocorre agora é que as empresas terão a necessidade de fazer uma alocação contábil dentro do chamado "purchase price allocation" (PPA), que ainda será totalmente regulado pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC). Simplificando, dentro de um PPA o ágio deverá ser alocado entre o valor justo dos ativos e passivos da empresa adquirida, incluindo, por exemplo, ativo fixo, intangível, sendo somente a diferença alocada ao que se chama "goodwill", esse último, em muitos casos, baseado na rentabilidade futura do negócio como um todo.

A questão é: como será o comportamento do fisco quando a empresa apresentar um relatório baseado em rentabilidade futura e pretender deduzir o ágio em cinco anos? A questão existe porque essa mesma empresa também terá, para fins contábeis, um relatório suportando o PPA que segregará o ágio em, por exemplo, edificações, terrenos e com uma sobra em "goodwill". Será isso considerado uma inconsistência na natureza do ágio? Será que o fisco poderá desconsiderar o relatório de rentabilidade futura utilizando o próprio relatório de PPA? E, nesse exemplo, permitindo a dedução do ágio pela depreciação do ativo fixo (em prazo provavelmente superior a cinco anos), sem permitir dedução da parcela alocada ao terreno e permitindo, por fim, a dedução do ágio por exclusão - no prazo mínimo de cinco anos - da parcela remanescente do ágio alocada a "goodwill"?

Há muitas questões e detalhes que devem ser considerados e que foram simplificados para fins ilustrativos e para entendimento geral. As mudanças contábeis são muito significativas e os impactos fiscais também podem ser, mesmo com a existência de uma norma geral que busca a neutralidade. Em termos práticos, a neutralidade pode não ser tão neutra assim e é necessário um conhecimento profundo das novas regras contábeis para uma boa avaliação dos impactos fiscais. Além disso, fica a expectativa do comportamento que se pode esperar das autoridades fiscais em relação às situações em que os novos procedimentos contábeis conflitam com os procedimentos fiscais baseados nas regras contábeis existentes até 2007.

Roberto Haddad é sócio da área de assessoria tributária da KPMG
Fonte: Valor online, via CFC

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