Alexandre Schwartsman 04/11/2010
Valor Econômico, VIA FENACON
É arriscado escrever algo sobre o assunto depois que Mansueto Almeida descreveu nestas páginas as exéquias do superávit primário, mas neste caso aindignação supera o receio da comparação com o excelente artigo publicado háuma semana. Refiro-me, é claro, à divulgação do desempenho fiscal do governo federal em setembro, que, segundo a Secretaria do Tesouro Nacional, teria registrado saldo pouco superior a R$ 26 bilhões, constituindo-se assim no maior da série histórica iniciada em 1997.
O futuro do pretérito se aplica porque tal resultado não reflete, na verdade, um esforço fiscal do governo, mas um surto de contabilidade criativa que trata um aumento do endividamento como se fora crescimento da receita.
De fato, como se sabe, o superávit recorde resulta da contabilização da cessão onerosa ("venda") de 5 bilhões de barris de petróleo por R$ 75 bilhões, dos quais R$ 43 bilhões foram utilizados para a aquisição das ações da Petrobras em oferta pública. A diferença, R$ 32 bilhões, foi incorporada ao saldo do superávit primário do mês. Note-se que, sem essa "receita" extraordinária, o resultado primário do governo federal teria sido negativo em quase R$ 6 bilhões, a despeito do crescimento fenomenal da arrecadação.
A cessão onerosa significa que o governo antecipou as receitas que proviriam da exploração futura dos campos petrolíferos do pré-sal, operação que não difere, em sua essência, da emissão de títulos públicos federais. Com efeito, neste último caso o governo antecipa receitas tipicamente associadas à arrecadação de tributos, enquanto no caso anterior obtém hoje as receitas que apareceriam alguns anos à frente, em ambos os casos onerando as próximas gerações. Apesar disso, a emissão de títulos é contabilizada como dívida, enquanto a cessão onerosa foi tratada como receita.
Não bastasse isso, parcela da "receita" oriunda dessa operação veio do BNDES, que, para pagar ao Tesouro Nacional, obteve recursos do... Tesouro Nacional! Impossível não lembrar da velha anedota em que dois sócios num bar venderam um ao outro todo o estoque de bebidas, contabilizando a carraspana como lucro.
Na prática, portanto, o que se observa é uma contínua piora do desempenho fiscal. Se ainda era possível explicar a redução do superávit primário em 2009 pela combinação da queda da arrecadação (devida à recessão) com políticas supostamente anticíclicas, hoje não resta dúvida que vivemos uma expansão fiscal quase sem precedentes. O gasto federal real tem crescido a uma velocidade superior a 10% ao ano na comparação com 2009, mesmo contra um pano de fundo de crescimento vigoroso do produto, deixando claro que a política fiscal não guarda qualquer relação com o ciclo econômico (se guardasse, deveríamos observar agora forte redução das despesas).
Como sabe qualquer um que tenha lido (e não apenas colorido) um livro básico de macroeconomia, uma expansão fiscal dessa magnitude tem impactos consideráveis sobre a demanda doméstica. Aliás, não é por outro motivo que cansamos de ouvir no ano passado que o aumento do dispêndio se justificava para evitar que a economia mergulhasse numa recessão. Curiosamente, quem usava esse argumento à época afirma agora que o gasto público não afeta a demanda. A menos, porém, que isso queira dizer que política fiscal expansionista só tenha efeito sobre a demanda nos anos ímpares, é simplesmente impossível conciliar essas duas afirmações.
Isto dito, as implicações para inflação, taxas de juros e taxa de câmbio são bastante diretas. Gastos mais elevados significam que a demanda interna cresce mais rápido do que ocorreria sem tal aumento. Numa situação de relativa folga (desemprego alto e baixa utilização de capacidade) o crescimento da demanda se materializa em expansão do produto, mas, à medida que os gargalos no mercado de trabalho, infraestrutura e de capacidade começam a se manifestar, as pressões inflacionárias aparecem e eventualmente levam o Banco Central a praticar uma política monetária mais apertada do que a que prevaleceria sob uma política fiscal mais austera.
Inclusive, se resta ainda quem duvide que essas considerações façam parte do processo de decisão de política monetária, sugiro apenas a leitura do parágrafo 25 da última ata do Copom, onde se lê que "(a) convergência (da inflação) está condicionada à materialização das trajetórias com as quais o Comitê trabalha para variáveis fiscais e creditícias, entre outras". Em "bancocentralês" é difícil mensagem mais explícita.
Entretanto, se a taxa de juros é mais alta, também a taxa de câmbio deve ser mais apreciada. Obviamente, há outros elementos afetando simultaneamente a taxa de câmbio (dentre os quais os preços de commodities e o valor global do dólar são particularmente influentes), mas, independente disso, pode-se afirmar que, dados os demais fatores, um aumento do gasto público implica, sim, um câmbio mais apreciado relativamente ao que ocorreria num cenário de gasto mais baixo.
Autoengano à parte, não há contabilidade criativa que resolva esse problema.
Alexandre Schwartsman, economista-chefe do Grupo Santander Brasil, é doutor em Economia pela Universidade da Califórnia, Berkeley, e ex-diretor de Assuntos Internacionais do BC http://maovisivel.blogspot.com e alexandre.schwartsman@hotmail.com
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