segunda-feira, 1 de junho de 2009

Contabilidade aplicada à solução de conflitos

A adoção das práticas internacionais de contabilidade pela legislação brasileira - Lei nº 11.638, de 2007, alterada pela MP 449 - despertou a consciência de que é imprescindível a interação entre os profissionais da área contábil e os da área jurídica. Há nas normas internacionais de contabilidade (IFRS), para as quais as normas brasileiras estão convergindo, a valorização do julgamento e a primazia da substância sobre a forma. Portanto, o registro contábil dos negócios jurídicos não pode se restringir a um exercício mecânico, baseado em fórmulas, mas pressupõe uma análise mais técnica sobre a natureza do negócio jurídico em si e sobre a vontade das partes que está por detrás do documento assinado.

De um lado, a necessidade de julgamento acerca dos eventos que devem ser informados no balanço da empresa introduz uma certa subjetividade aos registros contábeis, de maneira a refletir a sua situação individual e específica. De outro lado, a primazia da substância sobre a forma reforça a essência econômica do negócio jurídico, independentemente da denominação do contrato firmado ou da sua aparente estrutura. Isso significa que a contabilidade pode revelar a adequada natureza jurídica do negócio celebrado, servindo como instrumento para a aplicação da norma de direito civil, no sentido de que se o negócio jurídico contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido - artigo 170 do Código Civil.

As demonstrações financeiras servem como instrumento para a solução de conflitos jurídicos de variadas ordens. Tomem-se alguns exemplos: no campo do direito societário, a exclusão de sócio, ou mesmo a retirada espontânea de sócio, requer avaliação da participação desse sócio, para a qual a contabilidade é um dos instrumentos; assim, eventual julgamento equivocado no registro contábil compromete essa avaliação e pode beneficiar um dos lados em detrimento do outro. Na área do direito dos contratos, além de o registro contábil poder servir como forte indício da existência de uma dívida, se rigorosamente respeitada a primazia da substância sobre a forma, esse registro contábil comprova também a responsabilidade das partes, como ocorre no contrato de leasing financeiro, em que são transferidos ao arrendatário o benefício, o risco e o controle do bem arrendado, indicando a natureza de compra financiada. Já no direito administrativo, a subjetividade do julgamento contábil pode instaurar o conflito, sendo necessária uma análise acurada da contabilidade para a sua solução: no cumprimento dos índices mínimos de qualificação em concorrência pública, o ajuste a valor presente ou a marcação a valor justo, de ativos ou passivos, pode vir a alterar o índice de liquidez ou o índice de endividamento, qualificando um licitante ou desqualificando outro. Em rigor, todo conflito com viés patrimonial tem nas demonstrações financeiras um adequado e útil meio de prova - inclusive a separação judicial (direito de família).

Os responsáveis pela atribuição de resolver esses conflitos devem ser capazes de colher nas demonstrações contábeis os fatos, o direito e as respectivas provas que embasarão a posição tomada e a distribuição da Justiça no caso concreto. É certo que o juiz, no Poder Judiciário, e o árbitro, em procedimento alternativo de solução de controvérsia, podem solicitar a realização de perícia, por contabilista habilitado, para traduzir a linguagem contábil, a fim de auxiliar na compreensão dos aspectos patrimoniais (valores econômicos) envolvidos na lide. Ocorre que, como comentado, o registro contábil não se limita à aplicação de fórmulas, mas requer julgamento, que, no caso de conflito, será, em última instância, feito pelo juiz ou pelo árbitro

Para finalizar, convém analisar um caso concreto: a responsabilização do ex-diretor pelo prejuízo apurado pela Aracruz e pela Sadia. Ao julgador desse caso polêmico, a contabilidade servirá como instrumento para decidir se os administradores sabiam ou não das operações de risco, haja vista que, como companhia aberta, a empresa está obrigada a divulgar suas demonstrações financeiras trimestralmente (os chamados ITR). Portanto, a comparação das informações relativas ao terceiro trimestre - base setembro - e ao segundo trimestre (base junho) de 2008 poderá contribuir para revelar se o julgamento contábil foi adequado ou não; em consequência, se os administradores poderiam ter sabido ou não dos riscos assumidos pela empresa naquele momento.
Fonte: Edison Carlos Fernandes (Valor Econômico, 18.05.2009) , via César Tibúrcio (blog Contabilidade Financeira)

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